Arqueologia da Memória


    Revista Casa Vogue - Agosto de 2017

    O mesmo conceito de resgate do móvel moderno brasileiro e da arte da tapeçaria que Graça Bueno aplica em sua galeria se vê no seu apartamento em São Paulo. Um elogio ao que o país tem de melhor.

    O sol de Jean Gillon, com almofadas bordadas mexicanas e lisas, de Eva Soban, é um dos destaques do living, que traz poltrona Jangada, também de Gillon, um par de poltronas de palhinha e mesa de centro recortada da série Tronco, tudo de Joaquim Tenreiro, e mesa de centro retangular de jacarandá, da loja llum Bolighus, em Copenhague. Na foto inicial na pag. anterior uma tapeçaria de Genaro de Carvalho recebe o visitante que chega à casa abaixo dela, aparador vintage de jacaranda que veio do apartamento anterior de Graça Bueno.

    Os lambris de jacarandá que cobrem uma das paredes do living tiveram sua primeira vida na antiga Rede Manchete e ficaram guardados por 20 anos até encontrar seu lugar aqui, "com desenho inspirado em um armário de Charlotte Perriand".

    "Nós esquecemos quem foi Rubem Dario", diz Graça Bueno. A verdade é que nós não o esquecemos, pelo simples fato de nunca tê-lo conhecido. À frente da galeria Passado Composto Século XX, aberta em 2002 e voltada exclusivamente para o mobiliário moderno brasileiro desde 2009, a antiquária e colecionadora se empenha não apenas em trazer os nomes mais significativos do período, mas em fazer voltar à cena artistas fundamentais da tapeçaria - caso mais recente de Dario.

    Seu apartamento é espelho de dupla face: reflete tanto a galeria quanto a sua peculiar compreensão do tempo das coisas. Os lambris de jacarandá que cobrem uma das paredes do living tiveram sua primeira vida na antiga Rede Manchete e ficaram guardados por 20 anos até encontrar seu lugar aqui, "com desenho inspirado em um armário de Charlotte Perriand", revela. Os lustres do corredor, da suíte principal e da cozinha (há uma segunda suíte e uma sala de TV) foram adquiridos ao longo de anos de uma parceria entre duas empresas de design europeias. Hoje dão unidade aos espaços.

    Para um estrangeiro que jamais tivesse ouvido falar no nosso móvel moderno, um olhar sobre o living de 46 m² bastaria como explicação. Ali estão Joaquim Tenreiro, Jean Gillon, Sergio Rodrigues e Geraldo de Barros, avizinhados por algumas peças dinamarquesas que lhes são tão semelhantes no traço e no uso do jacarandá. Graça discorre sobre cada item, como num tour interativo dos melhores museus. Conta que a tapeçaria de Jacques Douchez, Remanso, "fez parte de uma retrospectiva sobre a obra dele na Pinacoteca do Estado

    de São Paulo, em 2003, e a matriz se

    Curioso imaginar que aos 18 anos Graça foi para a Europa em uma temporada que se estendeu por uma década. De volta ao Brasil, ainda assim nunca parou de viajar. "Quando a gente vê o Brasil de fora desenvolve um olhar estrangeiro. Um dia vem a saudade e o reconhecimento, então você se volta para as suas raízes e acha tudo muito mais bonito." É com esse olhar que, em Sergipe, ela se encanta com a cor dos rios e com o artesanato local. Em Alagoas faz a rota do cangaço sob um calor de 40 graus poucos meses antes de embarcar para as feiras de arte e design modernos de Nova York. "Tenho na galeria a missão de resgatar a memória nacional", afirma. Resgate que estabelece o elo entre culturas ancestrais e contemporâneas, mas que estamos apressados demais para percebê-lo. Entre as obras expostas na mostra Artistas da Tapeçaria Moderna II, que a galeria exibiu até janeiro deste ano, podia-se admirar uma tanga com sementes e plumas do grupo waiwai, de seu acervo pessoal. "Quis mostrá-la porque nós esquecemos encontra numa coleção particular no Rio de que os indígenas tecem e essa tanga Janeiro". E assim acontece com todos os é uma espécie de tapeçaria."

    Graça posa mesa de jantar de Sergio Rodrigues, rodeada de cadeiras de Joaquim Tenreiro, tendo ao fundo a tapeçaria Remanso, de Jacques Douchez; nas laterais dos móveis gêmeos de Geraldo de Barros, duas cadeiras também de Tenreiro - o vaso dos anos 1940 é da Passado Composto (de Cida Santana, mãe da moradora), as arandelas são feitas de placas Prismatic, da Fábrica Pelotas, dos anos 1970, e o tapete é dinamarquês

    Verde vivo na sala de TV que pode ser convertida em quarto de hóspedes: sofá Amazonas, de Jean Gillon, chaise Miranda, de Bruno Mathsson, banco dinamarquês (ao centro) e, na parede, entre outras obras, arte indígena waiwai e karajá, além de dois chapéus de noiva sul-africanos

    Acima, no living, uma poltrona anônima e, na parede acima dela, fotografia de Jean Manzon mostrando a escultura O Impossível, da brasileira Maria Martins - acima do bufê de autor desconhecido, serigrafia de Julio Plaza González. Na pág. anterior, no mesmo ambiente, o sofá de Joaquim Tenreiro tem estrutura única que se desdobra em mesas laterais e recebe, entre outras, a almofada laranja vinda da casa de Jacques Douchez - tapete com desenho de Tenreiro executado pela Santa Helena, e, na parede, uma série de seis obras de Jean Gillon com o tema Carnaval.

    Texto: Cristina Dantas | Estilo: Adriana Frattini
    Fotografia: Ruy Teixeira

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