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Genaro e a Luz da Bahia | Por Renato Menezes


"Seu gosto pelo decorativo se desenvolvera e suplantara a íntima desordem. Parecia ter descoberto que tudo era passível de aperfeiçoamento, a cada coisa se emprestaria uma aparência harmoniosa; a vida podia ser feita pela mão do homem". - As palavras de Clarice Lispector sobre o temperamento de Ana, protagonista do conto Amor, ecoam as que Manuel Bandeira endereçou a Genaro de Carvalho, quando escreveu que suas "telas e tapeçarias quase que se confundem, pois nestas e naquelas se está revelando, e tão liricamente como nos títulos das obras, o senso decorativo do artista". O gosto pelo decorativo que Genaro compartilha com Ana é o que os levou, na realidade ou na ficção, a procurar no mundo aquilo que de mais belo ele podia oferecer para que, quando não encontrasse, soubessem bem como enxertar tal lacuna com o que de melhor suas mãos conseguissem fabricar. Talvez seja por isso que a obra de Genaro tenha se constituído sempre no duplo registro da imitação e da reinvenção da natureza, gesto de conciliação entre continuidade e ruptura, que se revira e se acomoda no intervalo aberto entre os principais atributos de sua arte: ornamento e cor. Disso Genaro fez instrumentos com os quais desejou recriar a paisagem baiana, pois na Bahia ele via quanto da terra se pode ver no Universo, pois, como escreveu Jorge Amado, "é essa condição do filho de sua gente e de sua terra a maior responsável pela universalidade de sua obra". E nela, ele salpicou flores solares e sóis florais, entre os quais pássaros leves como as borboletas e borboletas decididas como os pássaros experimentam um ar úmido ao sabor da liberdade; e eis que, de maneira repentina, descobrimos palmeiras que alcançam a grandeza de uma rosa, cipós que se enredam feito cortina de renda e jardins domésticos que ganham a escala de uma floresta enquanto a cidade invade varanda adentro.

Pois o universo de Genaro, como o de Ana, é governado pela imaginação, e o que o sustenta é uma estrutura complexa de arabescos, folhagens, raízes e bambus que contradiz a suposta desvinculação entre arte moderna e ornamento. O ornamento é, decerto, o apetrecho do ambiente ao qual sua arte serve, mas é também, e sobretudo, o aparelho que estrutura suas composições. É dele que emerge a ordem formal abstrata que ele impõe às figuras, conduzindo a organização dos códigos da natureza, em geral, e da sua própria natureza, inventada e corrigida, em particular. O melhor exemplo disso é a pintura Cadeira Austríaca (1966), em que se vê uma voluta como braço de cadeira: dela ascende a forma da flor que se abre acima, ao passo que se revela também um protótipo para o arremate dos sinuosos cabelos de suas modelos - tudo é forma, tudo é ornamento.

Mas o ornamento, no caso de Genaro, não é um fim em si mesmo. Ele é o meio pelo qual o ideal de forma moderna se torna experiência cotidiana, transformação a que se sobrepõe seu ímpeto criativo. Como afirmou em uma entrevista oferecida, não por acaso, à Clarice Lispector, "criar é, sobretudo, não morrer. É uma necessidade vital, orgânica, indispensável. E cotidiana. Se eu não criasse arte, certamente criaria outra coisa de que gostasse". A ênfase na criação supõe, para Genaro, a natureza fabril da arte, a técnica, o saber empírico, aquele oriundo da observação continuada e da prática, que assegura a manutenção da vitalidade que o irriga e faz sua obra germinar. Os ornamentos são, enfim, os adereços dos circos, cortejos e festas populares que penetraram como perfume por todos os poros de sua arte, e nela se mantiveram retidos, em estado de latência, por toda a sua produção, como atesta seu célebre mural pintado no Hotel da Bahia, em 1950, quando tinha apenas 24 anos.

Se, na obra de Genaro, o ornamento dá o ritmo e o movimento que estruturam sua profundidade imaginativa, à cor ele atribui uma função enérgica que garante a expansão decorativa de sua arte. Procedendo por via da distribuição de extensas faixas pretas que ora modulam a gradação dos tons, ora dão forma às coisas que frequentam uma zona impermanente entre a figuração e a abstração, ele atribui às figuras uma fatura eminentemente gráfica, que represa áreas inteiras de cor e o permitem controlar o calor quase humano que o fosco da lã ajuda a emanar. São também essas faixas pretas às quais ele recorre que condensam e arrefecem a tensão produzida pelo embate iminente entre as cores, que vibram em seus respectivos casulos e explodem quando, eventualmente, um raio de sol se torna pétala de flor ou uma mariposa farfalha como folhas que se encostam levadas pelo vento forte.

Cor e textura, aliás, compactuam quando da emergência de formas sensíveis ao toque. Esse é o caso de Verão pelo avesso. Nessa tapeçaria, não vemos a superfície das coisas que estalam sob o sol, muito embora a paisagem interior em que Genaro nos situa não se prive da invasão de uma luz radiante. Dentro e fora, frente e verso, encontram aqui lugar privilegiado de reafirmação do duplo registro de sua paisagem - que é imitação e reinvenção -, alcançando um modo inteligente de comentar a origem pictórica de sua tapeçaria. Agora, tudo é cor, tudo é superfície (e seu avesso). Genaro repercute, assim, as palavras de seu amigo Jorge Amado, quando este afirmou que "sua tapeçaria nasce da pintura, uma pintura que é a luz da Bahia e sua sabedoria popular". Tanto por isso que sua pintura é um comentário sobre a cor local, ponto de vista a partir do qual o mundo inteiro é visto e no qual o mundo inteiro cabe. Afinal, foi isso que ele esboçou dizer diante de Clarice Lispector, aquela que ousou revelar, da forma mais insuspeita, o elã de sua criação: "A Bahia é minha eterna namorada, e realmente suas cores e luzes me fascinam. A luminosidade de seus poentes, o amarelo dos seus coqueiros inflexíveis e farfalhantes. Pode ser um lugar comum ou letra de samba, mas é a verdade".

Fato é que Genaro nos ensinou que a Bahia não escurece, nem mesmo à noite; ele teceu em linhas e lãs o que Caetano e Galvão, juntos, teceram em versos: "Quando o sol se põe/Vem o farol/Iluminar as águas da Bahia".

Renato Menezes

É historiador da arte. Doutorando em história e teoria da arte pela École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS, Paris), mestre em história pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e graduado em história da arte pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Entre 2020 e 2021 colaborou com o departamento curatorial do Getty Research Institute, onde atuou junto ao núcleo de arte latino-americana. Coorganizador de França Antártica: ensaios interdisciplinares (Editora da Unicamp, 2020). Foi membro da equipe de pesquisa e curadoria das exposições "Raio-que-o-parta: ficções do moderno no Brasil", no Sesc 24 de maio, e da exposição "Um Defeito de Cor", no Museu de Arte do Rio. Atualmente é curador da Pinacoteca de São Paulo.

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