Em 1964, Maria Angela Magalhães e Gilda Vieira Carneiro, criaram o Artesanato Guanabara, que se especializou em transpor para tapeçaria os cartões de artistas plásticos. A primeira mostra dessa vertente aconteceu em 1968, na Galeria Guignard, em Belo Horizonte, com trabalhos de Maria Helena Andrés. O ateliê fez grande sucesso, chegou a ter 70 artesãs trabalhando nele, e realizou tapeçarias de pintores renomados como Iberê Camargo e Alfredo Volpi.
Naquele momento, a tapeçaria estava em voga, numa herança da utopia modernista do pós-guerra, que acreditava na possibilidade de mudança do ser humano através da junção da arte, da arquitetura e do urbanismo. Le Corbusier (1887-1965), um dos mentores dessa proposta, conhecida como "síntese das artes", tinha especial apreço pela tapeçaria, para a qual cunhara a poética expressão "mural nômade". Arte milenar, que remonta ao início da civilização, a tapeçaria foi usada, por séculos, nas mesquitas e castelos medievais para trazer às paredes cor e calor. Essa capacidade de criar acolhimento, e de se integrar às paredes como murais, surgiu como um excelente recurso para cobrir os amplos e desnudos espaços da arquitetura moderna, que se espalhara pelo mundo e ganhara força no Brasil a partir da inauguração de Brasília, em 1960.
Desde a década de 1950, passaram por aqui exposições que incluíam tapeçarias modernas, como Grupo Espace e Tapeçarias Abstratas, ambas realizadas no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro . Também se tornaram frequentes as mostras de tapeceiros brasileiros, como Genaro de Carvalho (1926 -1971), Madeleine Colaço (1907-2001), Jacques Douchez (1921-2012) e Norberto Nicola (1931-2007), entre outros. Esse processo de inserção do têxtil no circuito de arte teve como ponto de inflexão a atribuição, em 1965, de um dos prêmios da VIII Bienal Internacional de São Paulo à tapeceira Magdalena Abakanowicz (1930-2017), e resultou em eventos emblemáticos como a 1ª Mostra de Tapeçaria no MAB-FAAP, SP, em 1974, as I e II Trienais de Tapeçaria no MAM-SP em 1976 e 1979, e a mostra Caminhos da Tapeçaria na Galeria Funarte no Rio de Janeiro em 1978.
O Artesanato Guanabara trabalhava majoritariamente com tapeçaria bordada, e quem conduzia a parte artística era Maria Angela Magalhães (1925 - 2009). Mais do que uma transposição da pintura para a lã, podemos dizer que ela fazia uma "transcriação", parafraseando Haroldo de Campos. O neologismo, cunhado pelo poeta concretista, se refere ao complexo processo de tradução de um poema, pois não é possível apenas mudar as palavras de uma língua para outra, é preciso algo mais profundo. Segundo ele: "não se trata de re-criar, mas de trans-criar". Era exatamente o desafio a que se propunha Maria Angela; realizar com as técnicas têxteis as sutilezas de tinta e pincéis, o que, nas suas próprias palavras exigia: "pensamento, intuição, muita ousadia, e a extrema paciência e habilidade das que tecem". Para conseguir captar a vibração e o fluxo pictórico das obras ela usava uma profusão de diferentes pontos de tapeçaria, desde os tradicionais: haste, arraiolo, brasileiro, corrido, até outros inventados, em diagonal e em espiral. Com linhas soltas sugeria grafismos, usava cetim e seda para conseguir brilhos, mesclava vários tipos de lã e linha na mesma agulha para sugerir profundidade e até mesmo tricô para criar relevos.
Durante o processo ela conversava com os artistas para ouvir suas sugestões desenvolvendo um trabalho conjunto, pleno de admiração e respeito mútuos. Maria Angela conquistou tanto reconhecimento que suas tapeçarias passaram a trazer duas assinaturas, a do artista e a do ateliê. O Artesanato Guanabara também realizou obras de tapeceiros como Inge Roesler, Bia Vasconcellos, Maria Kikoler, Parodi, entre outros, e estabeleceu parcerias constantes com artistas plásticos mais próximos das técnicas têxteis, como o grupo aqui apresentado, constituído por Maria Helena Andrés, Jorge Cravo, Rubem Dario e Gilda Azevedo.
Vale observar que a década de 1960 é um momento internacional de predomínio da abstracionismo. O movimento, que já existia antes da Segunda Guerra, propunha uma completa libertação da figura e a independência do real, e era de fato uma mudança radical na forma de se pensar a arte. Retomado no Pós-Guerra, ele se espalhou como um rastilho de pólvora, explodindo com conceitos antigos e recebendo a adesão de artistas pelo mundo todo. A inauguração da I Bienal Internacional do Museu de Arte Moderna de São Paulo, em 1951, foi o momento no qual os artistas brasileiros travaram de fato contato com o abstracionismo e a ele aderiram. Em seguida, duas correntes começaram a seguir caminhos distintos, conhecidas como abstração informal e abstração geométrica. O abstracionismo informal não se organizou em torno de grupos e teorias. Seu pressuposto básico era o da liberdade de cada artista para a expressão de sua subjetividade. Por isso, seus trabalhos revestem-se de características singulares ora mesclando sensações da realidade interior e exterior, em obras carregadas de alta dramaticidade e emoção, ora numa vertente mais lúdica, ou ainda através da investigação de cores, nuances e tessituras, nas quais por vezes persiste um perfume da figura. Exatamente nesse viés situam-se os nossos artistas.
Maria Helena Andrés (Belo Horizonte, MG, 1922), hoje centenária, é artista plástica, escritora e arte-educadora, sendo uma das precursoras do movimento de arte moderna em Minas Gerais. Em 1944 fez parte da primeira turma de Alberto da Veiga Guignard (1896 - 1962), em Belo Horizonte, e, na década de 1960, tornou-se professora e diretora da escola que leva até hoje o nome do mestre. Sua fase inicial é figurativa, mas, Maria Helena foi aos poucos reduzindo as formas, num trabalho no qual há uma predominância das linhas. Os barcos e as velas foram elementos importantes na trajetória da artista, conduzindo-a em direção à abstração e à cor. Prima de Maria Angela, foi por ela instigada a trabalhar com tapeçaria, e encantada com as possibilidades, realizava seus estudos em pastel sobre papel veludo, para mostrar o efeito desejado na textura das lãs. Barqueiros do Rio São Francisco e Velas ao vento, deixam nítido tanto o percurso da artista, quanto seu entendimento das possibilidades do têxtil. Em 1977 ela realizou um conjunto de tapeçarias monumentais para a Igreja Nossa Senhora de Copacabana, no Rio de Janeiro, que até hoje emociona os fiéis.
Jorge Cravo (1927-2015) foi uma figura marcante no cenário artístico da Bahia, Cravinho, como era conhecido, transitou entre a música e as artes plásticas, e nelas entre a abstração e a figuração. Incentivado por amigos como Carybé e Jorge Amado, encaminhou-se para a tapeçaria trabalhando, muitas vezes, a partir de registros fotográficos dos casarios antigos de Salvador. Sua esposa, a astróloga Edna Cravo, orientava as bordadeiras baianas produzindo tapeçarias que tiveram grande sucesso. Inquieto, e interessado em várias visões artísticas, Jorge Cravo produziu com o Artesanato Guanabara, trabalhos abstratos nos quais explora as possibilidades da expansão do movimento, realizados com a sofisticação característica de Maria Angela. Concentrada em tons quentes e terrosos a tapeçaria apresentada na exposição é impactante, remetendo à força telúrica de uma explosão de magma.
Rubem Dario (1941-1978) foi um artista plástico e tapeceiro, que residiu entre Minas e Rio. Reconhecido como um excepcional colorista, teve uma carreira brilhante, falecendo precocemente aos 37 anos. Sua obra, ancorada no desenho, sempre teve características murais, o que o levou da pintura à tapeçaria ainda muito jovem. Logo percebeu as peculiaridades da arte têxtil, e os guaches que realizava como matrizes para suas tapeçarias eram específicos para esse fim, atentos à trama do tear, ou aos pontos de bordado . Ele cogitou a possibilidade de ter um ateliê próprio, mas optou por trabalhar com profissionais que geriam a execução de suas obras, como Gilda Mendonça, sua mãe, a estilista Niná Bittencourt, e Maria Angela Magalhães. No trabalho apresentado na exposição fica claro o percurso pictórico do artista. A obra da década de 1970 é uma evocação lírica da natureza, na qual se alternam camadas paralelas e sutis intersecções de cor.
Gilda Azevedo (1924 - 1984) nascida no Rio de Janeiro, a artista frequentou os cursos do MAM-Rio e sempre se manteve fiel ao abstracionismo informal, num trabalho pleno de gestualidade larga e jogos de volumes que insinuam formas cósmicas. Após se dedicar uma década à pintura passou a trabalhar com tapeçaria, em 1969, vindo a tornar-se uma das figuras mais marcantes da tapeçaria mural no Brasil. Desde o início trabalhou com o Artesanato Guanabara, que conseguia captar com precisão sua forma de expressão densa e surpreendente. Gilda foi a artista que mais realizou encomendas com o ateliê, estabelecendo uma parceria de grande sucesso, que se estendeu por dez anos. Nas tapeçarias apresentadas na exposição fica claro esse desenvolvimento em mão dupla, no qual é possível perceber a origem pictorial da obra de Gilda e os recursos usados por Maria Angela para criar uma abordagem expressiva, numa proposta que extrapola a tapeçaria plana para criar uma experiência sensorial.
Muito atuantes, os quatro artistas participaram das mais significativas exposições nacionais e internacionais realizadas nesse momento especial, pleno de certezas do poder regenerador da arte. Complementa a exposição, o lançamento da 1a reedição da poltrona Tijuca, de Jean Gillon, artista e designer naturalizado brasileiro. Criada em 1970 ela é coetânea da mesma utopia na qual transitaram nossos tapeceiros. O toque de contemporaneidade fica para as intemporais luminárias de Cida Santana, espargindo sua mágica luz cristalina.